Fotografia cedida por: Cristina
A montanha e a Bíblia
Às pessoas dos países evoluídos a montanha evoca bons ares e paisagens de sonho. Quando conseguem tempo livre de preocupações e de trabalho, refugiam-se no remanso duma montanha, que as retira da agitação das grandes metrópoles. Os antigos, essencialmente religiosos, com a fé viam na montanha muito mais: viam o lugar por excelência de manifestação da divindade e do encontro com o divino. Várias montanhas, onde a fé colocava a aparição de determinada divindade a figuras humanas fundadoras, eram elevadas ao estatuto de sagradas. Por isso, algumas montanhas sempre foram - até aos dias de hoje - lugar de peregrinação religiosa.
Assim era também nas civilizações pré-clássicas. Não admira que o povo bíblico - uma delas - partilhasse esta religiosidade. A sua fé viu na montanha um símbolo especial da presença do seu Deus. Já do patriarca Abraão se diz ter sentido o apelo de Deus no monte Moriá (Gn 22,1-19). É no alto do monte que o relato da aparição do seu Deus e a exigência do (suspenso) sacrifício do próprio filho deixa a mensagem de que o verdadeiro Deus não quer a imolação de seres humanos em sua honra.
A experiência do Êxodo dos hebreus do Egipto descreve uma teofania a Moisés "na montanha de Deus, o Horeb" (Ex 3,1), que o consagrou para a missão libertadora. A montanha da 'sarça ardente' torna-se o lugar de união da transcendência com a imanência, do divino com o humano (Ex 3,5). A mais célebre é a montanha do Sinai (outro nome para "a montanha de Deus"), onde a fé colocou nova teofania (Ex 19-34). O narrador não se preocupou por localizá-la com precisão geográfica. O importante era indicar um lugar sagrado ao encontro do povo com o seu Deus, um símbolo privilegiado da manifestação da glória divina, isto é, do ser de Deus enquanto projectado para o exterior. Foi a este monte especial que a fé do povo associou a doação da lei de Deus, fazendo-o aparecer como o monte da lei e da aliança, o monte que liga a terra ao céu.
Outro monte que exerceu influência no povo bíblico foi o de Sião, um lugar favorito a Israel. Corresponde a parte da cidade de Jerusalém e foi enriquecendo ao longo dos séculos a sua significação política e religiosa: moveu e comoveu o espírito humano ao menos durante um milénio. Foi para lá que David transladou a arca de Deus (2Sam 6-7), símbolo da presença do Deus da aliança no meio do seu povo. Assim, Sião tinha o mesmo simbolismo que o Sinai no Êxodo. Aí viria a ser construído o majestoso templo de Jerusalém, por decisão de David e execução de Salomão. Foi também por abrigar o templo que os profetas enalteceram o monte Sião, símbolo da congregação do povo disperso em vários exílios.
O universalismo de alguns profetas viu mesmo no monte Sião o pólo agregador de todos os povos: "No fim dos tempos o monte da casa do Senhor estará firme, assente por cima dos montes, elevado acima das montanhas. Para ele confluirão todas as nações, acudirão povos numerosos e dirão: vinde, subamos ao monte do Senhor, à casa do Deus de Jacob; Ele nos ensinará os seus caminhos e nós seguiremos as suas veredas, pois de Sião sairá a lei e de Jerusalém a palavra do Senhor" (Is 2,2-3; Miq 4,1-3). A esta ideia ecuménica andava unida a realidade da peregrinação popular, uma ou mais vezes por ano, ao monte do templo de Jerusalém, que produziu e usou os "Salmos de peregrinação" (120-134).
O Novo Testamento conserva este simbolismo da montanha e refere muitas como lugar privilegiado do encontro com Deus.
O monte das bem-aventuranças (Mt 5,1) aparece como o novo Sinai, onde Jesus, qual novo Moisés, promulga a nova lei programática para o novo povo da nova aliança.
O "monte alto" da transfiguração (Mt 17,1-9; Mc 9,2-10; Lc 9,28-36) tem significação muito especial. O facto de os evangelistas não indicarem o nome dele (a associação ao Tabor é uma tradição cristã do séc. IV) quer essencialmente relacioná-lo com o monte Sinai, o monte bíblico da revelação de Deus. O relato de Mateus não deixa dúvidas sobre essa ligação, para que o Jesus que sobe ao novo monte Sinai com três discípulos principais apareça como o novo Moisés que subiu ao monte Sinai com três notáveis de Israel (Ex 24,1-11) e como o supremo revelador de Deus: "este é o meu Filho amado em quem pus a minha complacência; escutai-o" (Mt 17,5). Como Moisés entrou dentro da nuvem que cobria o monte Sinai e tinha o rosto luminoso (Ex 24,15-18; 34,29-35), assim acontece com Jesus (Mt 17,2.5), assistido das duas figuras do Antigo Testamento que receberam revelações no monte Sinai e personificam a Lei e os Profetas, isto é, todo o AT, ao qual Jesus veio dar pleno cumprimento. Como o povo de Israel viu a glória do Senhor no cimo do monte Sinai (Ex 24,16-17), também os discípulos viram a glória de Jesus (Lc 9,32), ou seja, que ele é como Deus, Filho de Deus: o novo Moisés transfigurado tem atributos divinos. A sugestão de Pedro para "fazer aqui três tendas, uma para ti, outra para Moisés e outra para Elias" (Mt 17,4; Lc 9,33) faz alusão à festa da colheita, chamada no judaísmo 'festa das três tendas' ou dos Tabernáculos (Dt 16,13; Lv 23,34), porque se utilizavam tendas para evocar as tendas de Israel no deserto durante o Êxodo. Lucas acrescenta que Pedro "não sabia o que dizia", significando que, se no Êxodo o símbolo da presença de Deus no meio do seu povo era a tenda, agora Jesus é que é Deus connosco. Os discípulos ainda têm medo, como o povo de Israel diante do monte Sinai (Ex 19,16; 20,18-21). Mas, como fez Moisés, também Jesus os tranquiliza (Mt 17,6-7): o medo é próprio de servos, não de filhos. É deste monte que arranca a peregrinação definitiva de Jesus para "Jerusalém, onde se ia realizar o seu êxodo" (Lc 9,31), que na teologia de Lucas é o ponto culminante da história da redenção.
O monte das oliveiras serve de enquadramento à paixão de Jesus, mas também à sua ascensão ao céu (Act 1,9-12; Lc 24,50-53), portanto, lugar da revelação do amor e da glória de Deus em Jesus.
Jesus dessacralizou a montanha como lugar privilegiado do encontro com Deus. Quando a samaritana lhe diz "os nossos pais adoraram neste monte [o monte Garizim, no qual os samaritanos construíram um templo, em concorrência com o de Jerusalém] e vós dizeis que Jerusalém é onde se deve adorar, Jesus respondeu-lhe: acredita-me, mulher, chegou a hora em que nem neste monte, nem em Jerusalém, adorareis o Pai...; os verdadeiros adoradores adorarão o Pai com espírito e verdade, pois o Pai quer pessoas que o adorem assim" (Jo 4,20-24). O 'lugar' privilegiado do encontro com Deus é agora Jesus Cristo, Palavra definitiva de Deus. Depois de ter incarnado num ser humano, é especialmente nos humanos, no "próximo", que amamos Deus.
Todavia, esta dessacralização da montanha não lhe retira o seu simbolismo. Ela surge na vida do cristão como uma imagem que atrai a vida humana para as alturas, dando-lhe elevação e sentido superior. A montanha, alta e majestosa, aponta à fé a vocação essencial do ser humano a ascender pela senda íngreme e estreita da verdade e do bem. Quem faz o exercício sagrado da peregrinação ao monte proclama íntima e socialmente a sua condição de caminhante sobre a terra, na dureza e nas alegrias da vida; proclama que se sente atraído por "um novo céu e uma nova terra"; declara-se insatisfeito com o já realizado e desejoso de subir mais na vida do espírito. A imagem do monte está impregnada de uma simbologia particular no cristianismo, pelo facto de a vida de Jesus emergir qual caminhada que culmina no monte Calvário do perdão do mal moral e da salvação universal. O cristão que sobe ao monte deseja voltar de lá mais identificado com o mistério que esse lugar sagrado simboliza, onde a cruz, que lá nunca falta, está a apontar para a vida sem fim.
Fonte: Armindo dos Santos Vaz
Faculdade de Teologia, Universidade Católica Portuguesa