segunda-feira, abril 02, 2007

Semana Santa - 2007

Fotografia cedida por: Cristina


A montanha e a Bíblia


Às pessoas dos países evoluídos a montanha evoca bons ares e paisagens de sonho. Quando conseguem tempo livre de preocupações e de trabalho, refugiam-se no remanso duma montanha, que as retira da agitação das grandes metrópoles. Os antigos, essencialmente religiosos, com a fé viam na montanha muito mais: viam o lugar por excelência de manifestação da divindade e do encontro com o divino. Várias montanhas, onde a fé colocava a aparição de determinada divindade a figuras humanas fundadoras, eram elevadas ao estatuto de sagradas. Por isso, algumas montanhas sempre foram - até aos dias de hoje - lugar de peregrinação religiosa.
Assim era também nas civilizações pré-clássicas. Não admira que o povo bíblico - uma delas - partilhasse esta religiosidade. A sua fé viu na montanha um símbolo especial da presença do seu Deus. Já do patriarca Abraão se diz ter sentido o apelo de Deus no monte Moriá (Gn 22,1-19). É no alto do monte que o relato da aparição do seu Deus e a exigência do (suspenso) sacrifício do próprio filho deixa a mensagem de que o verdadeiro Deus não quer a imolação de seres humanos em sua honra.

A experiência do Êxodo dos hebreus do Egipto descreve uma teofania a Moisés "na montanha de Deus, o Horeb" (Ex 3,1), que o consagrou para a missão libertadora. A montanha da 'sarça ardente' torna-se o lugar de união da transcendência com a imanência, do divino com o humano (Ex 3,5). A mais célebre é a montanha do Sinai (outro nome para "a montanha de Deus"), onde a fé colocou nova teofania (Ex 19-34). O narrador não se preocupou por localizá-la com precisão geográfica. O importante era indicar um lugar sagrado ao encontro do povo com o seu Deus, um símbolo privilegiado da manifestação da glória divina, isto é, do ser de Deus enquanto projectado para o exterior. Foi a este monte especial que a fé do povo associou a doação da lei de Deus, fazendo-o aparecer como o monte da lei e da aliança, o monte que liga a terra ao céu.

Outro monte que exerceu influência no povo bíblico foi o de Sião, um lugar favorito a Israel. Corresponde a parte da cidade de Jerusalém e foi enriquecendo ao longo dos séculos a sua significação política e religiosa: moveu e comoveu o espírito humano ao menos durante um milénio. Foi para lá que David transladou a arca de Deus (2Sam 6-7), símbolo da presença do Deus da aliança no meio do seu povo. Assim, Sião tinha o mesmo simbolismo que o Sinai no Êxodo. Aí viria a ser construído o majestoso templo de Jerusalém, por decisão de David e execução de Salomão. Foi também por abrigar o templo que os profetas enalteceram o monte Sião, símbolo da congregação do povo disperso em vários exílios.

O universalismo de alguns profetas viu mesmo no monte Sião o pólo agregador de todos os povos: "No fim dos tempos o monte da casa do Senhor estará firme, assente por cima dos montes, elevado acima das montanhas. Para ele confluirão todas as nações, acudirão povos numerosos e dirão: vinde, subamos ao monte do Senhor, à casa do Deus de Jacob; Ele nos ensinará os seus caminhos e nós seguiremos as suas veredas, pois de Sião sairá a lei e de Jerusalém a palavra do Senhor" (Is 2,2-3; Miq 4,1-3). A esta ideia ecuménica andava unida a realidade da peregrinação popular, uma ou mais vezes por ano, ao monte do templo de Jerusalém, que produziu e usou os "Salmos de peregrinação" (120-134).

O Novo Testamento conserva este simbolismo da montanha e refere muitas como lugar privilegiado do encontro com Deus.

O monte das bem-aventuranças (Mt 5,1) aparece como o novo Sinai, onde Jesus, qual novo Moisés, promulga a nova lei programática para o novo povo da nova aliança.

O "monte alto" da transfiguração (Mt 17,1-9; Mc 9,2-10; Lc 9,28-36) tem significação muito especial. O facto de os evangelistas não indicarem o nome dele (a associação ao Tabor é uma tradição cristã do séc. IV) quer essencialmente relacioná-lo com o monte Sinai, o monte bíblico da revelação de Deus. O relato de Mateus não deixa dúvidas sobre essa ligação, para que o Jesus que sobe ao novo monte Sinai com três discípulos principais apareça como o novo Moisés que subiu ao monte Sinai com três notáveis de Israel (Ex 24,1-11) e como o supremo revelador de Deus: "este é o meu Filho amado em quem pus a minha complacência; escutai-o" (Mt 17,5). Como Moisés entrou dentro da nuvem que cobria o monte Sinai e tinha o rosto luminoso (Ex 24,15-18; 34,29-35), assim acontece com Jesus (Mt 17,2.5), assistido das duas figuras do Antigo Testamento que receberam revelações no monte Sinai e personificam a Lei e os Profetas, isto é, todo o AT, ao qual Jesus veio dar pleno cumprimento. Como o povo de Israel viu a glória do Senhor no cimo do monte Sinai (Ex 24,16-17), também os discípulos viram a glória de Jesus (Lc 9,32), ou seja, que ele é como Deus, Filho de Deus: o novo Moisés transfigurado tem atributos divinos. A sugestão de Pedro para "fazer aqui três tendas, uma para ti, outra para Moisés e outra para Elias" (Mt 17,4; Lc 9,33) faz alusão à festa da colheita, chamada no judaísmo 'festa das três tendas' ou dos Tabernáculos (Dt 16,13; Lv 23,34), porque se utilizavam tendas para evocar as tendas de Israel no deserto durante o Êxodo. Lucas acrescenta que Pedro "não sabia o que dizia", significando que, se no Êxodo o símbolo da presença de Deus no meio do seu povo era a tenda, agora Jesus é que é Deus connosco. Os discípulos ainda têm medo, como o povo de Israel diante do monte Sinai (Ex 19,16; 20,18-21). Mas, como fez Moisés, também Jesus os tranquiliza (Mt 17,6-7): o medo é próprio de servos, não de filhos. É deste monte que arranca a peregrinação definitiva de Jesus para "Jerusalém, onde se ia realizar o seu êxodo" (Lc 9,31), que na teologia de Lucas é o ponto culminante da história da redenção.

O monte das oliveiras serve de enquadramento à paixão de Jesus, mas também à sua ascensão ao céu (Act 1,9-12; Lc 24,50-53), portanto, lugar da revelação do amor e da glória de Deus em Jesus.

Jesus dessacralizou a montanha como lugar privilegiado do encontro com Deus. Quando a samaritana lhe diz "os nossos pais adoraram neste monte [o monte Garizim, no qual os samaritanos construíram um templo, em concorrência com o de Jerusalém] e vós dizeis que Jerusalém é onde se deve adorar, Jesus respondeu-lhe: acredita-me, mulher, chegou a hora em que nem neste monte, nem em Jerusalém, adorareis o Pai...; os verdadeiros adoradores adorarão o Pai com espírito e verdade, pois o Pai quer pessoas que o adorem assim" (Jo 4,20-24). O 'lugar' privilegiado do encontro com Deus é agora Jesus Cristo, Palavra definitiva de Deus. Depois de ter incarnado num ser humano, é especialmente nos humanos, no "próximo", que amamos Deus.
Todavia, esta dessacralização da montanha não lhe retira o seu simbolismo. Ela surge na vida do cristão como uma imagem que atrai a vida humana para as alturas, dando-lhe elevação e sentido superior. A montanha, alta e majestosa, aponta à fé a vocação essencial do ser humano a ascender pela senda íngreme e estreita da verdade e do bem. Quem faz o exercício sagrado da peregrinação ao monte proclama íntima e socialmente a sua condição de caminhante sobre a terra, na dureza e nas alegrias da vida; proclama que se sente atraído por "um novo céu e uma nova terra"; declara-se insatisfeito com o já realizado e desejoso de subir mais na vida do espírito. A imagem do monte está impregnada de uma simbologia particular no cristianismo, pelo facto de a vida de Jesus emergir qual caminhada que culmina no monte Calvário do perdão do mal moral e da salvação universal. O cristão que sobe ao monte deseja voltar de lá mais identificado com o mistério que esse lugar sagrado simboliza, onde a cruz, que lá nunca falta, está a apontar para a vida sem fim.

Fonte: Armindo dos Santos Vaz
Faculdade de Teologia, Universidade Católica Portuguesa

3 comentários:

Anónimo disse...

“Um ser humano só cumpre o seu dever quando tenta aperfeiçoar os dotes que a natureza lhe deu” - Hermann Hesse

Anónimo disse...

Só posso agradecer pelo teu contributo... Fiquei + rica.
Abraço

Anónimo disse...

De uma riqueza extraordinária, fiquei feliz por poder ler um pouco de algo que para além de ser lido pode ser vivido da forma que eu quiser. Sou livre.
Um beijo