domingo, novembro 19, 2006

Filoctetes, no Teatro do Bairro Alto


Filoctetes é um herói grego originário da Tessália, filho de Peante e de Demonassa. Segundo o mito, foram-lhe confiados o arco e as flechas de Héracles.

Chefiava um contingente de sete naus com cinquenta arqueiros, mas não chegou a Tróia com os outros chefes, pois durante a escala em Ténedo, foi mordido no pé por uma serpente, enquanto procedia a um sacrifício. A ferida infectou de tal modo que exalava um odor de putrefacção insuportável. Devido a isso, Ulisses e os outros chefes abandonaram o ferido em Lemnos, onde permaneceu dez anos.

Uma outra versão contava que Filoctetes fora ferido não por um animal, mas por uma flecha de Héracles envenenada que caíra da aljava, atingindo, acidentalmente, o pé do herói, como vingança de Héracles, que quis desse modo punir o perjúrio cometido por Filoctetes ao revelar o local onde ardera a pira erguida no Eta.

Ainda segundo outra versão, os gregos abandonaram Filoctetes na ilha para que ele curasse o ferimento, pois existia em Lemnos um culto de Hefesto cujos sacerdotes tinham fama de saber tratar mordeduras de serpente. O herói ter-se-ia curado, chegando algum tempo depois a Tróia, para se reunir ao exército grego.

Sófocles, na tragédia intitulada Filocletes, conta que o herói se feriu não em Ténedo, mas na pequena ilha de Crise, onde existia um altar de Filoctetes, com as imagens de uma serpente e de um arco esculpidas em bronze. Ele fora mordido por uma cobra escondida no meio de ervas altas, no momento em que limpava o altar de Crise.

A gruta onde Filoctetes viveu durante dez anos foi a única testemunha do sofrimento e da solidão deste herói. Esta gruta é caracterizada por Neoptólemo e pelo nosso herói.

Neoptólemo caracteriza o lugar habitado pelo triste herói como tendo folhagem calcada (v. 33), um copo tosco de madeira obra de artesão desajeitado e ainda com que fazer fogo (vv. 35-36) e farrapos a secar, cheios de pus repugnante (vv. 38-39).

Filoctetes descreve a gruta pela primeira vez (vv. 954-956) dizendo que a gruta era rochosa com dupla entrada, sem defesa e privado de alimento. Mais à frente (vv.1081-1094), descreve a gruta de côncava entrada como sendo abrasadora e gelada e como única testemunha da sua morte. Na hora da partida o herói despede-se da sua antiga morada (vv.1453-1454) dizendo que esta fora a sua única companhia. Assim sendo, podemos afirmar que o herói vivia enquadrado num cenário que denunciava o primitivismo do seu modus vivendi.

O trágico para Filoctetes não é somente ter sido abandonado em Lemnos. É ter de decidir se permanece na ilha ou ruma a Tróia; se se mata ou não Ulisses; se se suicida ou não. A sua única certeza é que não pretende lutar ao lado dos Atridas e de Ulisses.

A fatalidade em Filoctetes é estar no mundo sem ter participado da decisão. A sorte dele, ou não, foi o adivinho Heleno o ter citado como condição sine qua non para a destruição de Tróia. Se os Atridas não tivessem acreditado em Heleno, teriam deixado Filoctetes abandonado?

O herói viveu abandonado durante dez anos, arrastando-se penosamente pela ilha em busca do necessário. Tinha por companhia as aves, os animais, a solidão, o eco dos seus lamentos (vv. 936-940, 1081-1094, 1146, 1162, 1453...). A vida de sofrimento e de injustiça tornaram-no desconfiado.

A injustiça, o egoísmo e a traição sentidos ao longo de dez anos levaram-no a detestar a própria vida e a detestar-se a si próprio. Os homens já não lhe diziam nada, ou pouco lhe diziam.

Este herói, injustamente tratado pelos companheiros, tornou-se no homem exaltado pelos deuses, imprescindível à sociedade que o desprezou e que agora o tem de procurar. Procura-o, contudo, por necessidade e não para reparar a injustiça que lhe fizeram.

O herói é acusado de rejeitar a sociedade, mas foi ela quem o rejeitou. Filoctetes apenas exigia que o tratassem como homem e não como coisa. No entanto, era um homem livre e não escravo (vv. 995-996) e não se submeteu. Quis continuar livre, ser homem; preferiu a morte – que era certa, após lhe haverem roubado o arco a rebaixar-se e a prescindir da liberdade. Resistiu a todas as pressões, escondidas nas belas palavras e nas promessas mais sedutoras, ou acompanhadas das mais cruéis ameaças. Resistir era para ele uma virtude e não concebia que alguém o pudesse obrigar a fazer o que não queria.

Após a guerra de Tróia pouco sabemos do herói. A Odisseia refere que o herói chegou bem à sua pátria (canto III, vv.189-190), a partir daí podemos supor que o herói conseguiu chegar são e salvo a casa e que conseguiu alcançar a glória que lhe era devida.

O mito de Filoctetes tem subjacente uma clara função pedagógica. Actualmente, essa mesma função ainda prevalece. Quem lê a tragédia sofocliana consegue retirar uma lição de moral: não devemos abandonar ninguém só porque se encontra incapacitado, pois esse alguém, um dia mais tarde, pode ser precioso. Deste modo, o mito tem como objectivo criticar a maneira como a sociedade trata os que estão incapacitados.


Selecção Bibliográfica:

SÓFLOCLES, Filoctetes, Introdução, versão do grego e notas de José Ribeiro Ferreira, 2ªed., Coimbra, 1988, INIC.

FERREIRA, José Ribeiro, O drama de Filoctetes, 1ªed., Coimbra, INIC, série - Estudos de Cultura Clássica: 3, 1989.

MORAIS, Carlos, Expectativa e movimento no Filoctetes, Estudos de Cultura Clássica, INIC.

PULQUÉRIO, Manuel de Oliveira, Problemática da Tragédia So

focliana, 2ªed., INIC, s.d.

Fonte: Ana Carina Costa
Línguas e Literaturas Clássicas e Portuguesa


A vitória das emoções

Quando Luís Miguel Cintra / Filoctetes entra em cena, fazendo-se anunciar por gemidos de dor, ficamos logo a perceber o tom, patético, com que o actor decidiu dar corpo à personagem criada por Sófocles. Se, até ao momento, tínhamos ficado impressionados com a frieza do espectáculo – conferida pelo cenário e pelo desenho de luz, mas também pela interpretação contida dos actores – a partir daqui assistimos à entrada em cena do elemento humano naquilo que tem de mais orgânico e de afectuoso. A leitura á óbvia: a civilização torna-nos frios e calculistas, a natureza suaviza-nos, permite que as emoções nos dominem. Luís Miguel Cintra é, neste aspecto, o contraponto de António Fonseca. O seu Filoctetes é tão profundamente comovente como Ulisses de Fonseca é uma crueldade admirável. Os dois actores estão igualmente brilhantes o espectáculo faz-se muito do choque destes dois homens e dos mundos opostos que representam. No meio, está Duarte Guimarães/Neoptólemo, que começa como discípulo de um e acaba convertido ao outro… Para ver e meditar ( neste caso: recordar).

Fonte: Ana Maria Ribeiro, Jornalista, publicado no Correio da Manhã


O Formiga esteve lá


O nº 1 da rua Tenente Raul Cascais é um prédio banal com revestimento pedra de tijolo, tipo azulejo, duas varandas cinzentas sobressaem ao olhar menos atento.

A entrada para o edifício da Cornucópia é estreita, situada entre prédios em frente de uma porta de uma garagem. A rua é curta e termina num parque de estacionamento, com um sentido proibido. Neste domingo de sol pálido, uma temperatura agradável perdurava o silêncio pelas 16:15, dois gatinhos cinzentos malhados estavam deitados por cima da capota de um MG e outro algures.


O público começou a chegar quase em massa, e houve mesmo alguma confusão. A sala situa-se na cave e as cadeiras todas com capas brancas estão numa disposição de anfiteatro, repartidas por duas bancadas, de estrutura metálica de encaixe. A entrada é feita entre ambas.Assim poder-se-á dizer que não temos um palco, tudo decorre ao nível do solo.A destacar do cenário, os espelhos que reflectiam parte da imagem do público presente, talvez um espelho social. Simbologias...
A sala estava lotada com pessoas de várias idades, desde crianças a idosos.
Tinha caído a noite e o Jardim do Príncipe Real, deserto de pessoas, a fazer esquecer o movimento da semana, entrevêem-se perto da paragem quatro senhores vestidos por igual cumprimentam-se afectuosamente, com o Formiga a desaparecer de cena de autocarro. Fonte: Formiga





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