terça-feira, setembro 11, 2007

Georg Trakl


Revelação e Decadência


Estranhos são os caminhos nocturnos do homem. Quando eu, sonâmbulo, passa por quartos de pedra e em cada um ardia tranquila uma candeia, um candeeiro de cobre, e quando, cheio de frio, caí na cama, lá estava o rosto à cabeceira a sombra negra da forasteira, e em silêncio escondi o rosto nas mãos nas mãos lentas. À janela, o jacinto azul tinha também desabrochado, e aflorava aos lábios púrpura a velha oração no respirar do homem, caíam das pálpebras lágrimas de cristal, vertidas por este mundo amargo. Nessa hora eu era na morte do meu pai, o filho branco. Com as chuvadas azuis vinha da colina o vento nocturno, o sombrio lamento da mãe, de novo a morrer e eu vi o inferno negro no meu coração; minuto de silêncio reverberante. Silencioso, saiu de um muro caiado um rosto indizível – um jovem moribundo -, a beleza de uma estirpe que regressa a casa. Branca de lua, a frescura da pedra envolveu a fronte vigilante, foram morrendo os passos das sombras nos degraus em ruínas, no pequeno jardim uma dança de toda rosada.

Estava sentado em silêncio na taberna abandonada, debaixo das traves de madeira negras de fumo, solitário com o vinho; um cadáver resplandecente curvado sobre um corpo escuro, e as meus pés um cordeiro morto. A pálida figura da irmã saiu do azul em decomposição, e então falou a sua boca em sangue: picada de espinho negro. Ah, vibra-me ainda nos braços argênteos a violência das trovoadas. Corre, sangue, dos pés lunares florescendo nos atalhos da noite por onde passa a ratazana a chiar. Cintilai, estrelas, nas abóbadas das minhas sobrancelhas; e de mansinho ecoa o coração na noite.
Uma senhora vermelha com espada flamejante entrou na casa, fugiu com a fronte de neve. Oh, amarga morte.
E em mim ergue-se uma voz grave: Quebrei o pescoço ao meu cavalo na floresta nocturna, quando a loucura lhe saltou dos olhos púrpura, cariam sobre mim as sombras dos ulmeiros, o charco azul da fonte e a frescura negra da noite, caçador selvagem, perseguia um veado de neve, no inferno de pedra morreu o meu rosto.

E uma gota brilhante de sangue caiu do solitário; e quando dele bebi era mais amargo que a papoila; uma nuvem enegrecida envolvia-me a cabeça, as lágrimas de cristal dos anjos caídos; e de mansinho escorria o sangue da ferida argêntea da irmã, e uma chuva de fogo caiu sobre mim.(...)

Georg Trakl

1992 Outuno Transfigurado. Assírio&Alvim, Documenta poética, 103 e 105 pp Edição 325


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2 comentários:

Anónimo disse...

....parabéns Sérgio, só alguém com a tua sensibilidade para postar um texto tão profundo....gostei muito.

Formigadaterra disse...

Obrigado, Beta